Paixões, Futebol e Forró
2 - ALINE DESCONTENTE
Aline
Descemos
pela rua que fica perpendicular à principal que passa ônibus, numa ladeira bem
íngreme, mais a frente vimos a lanchonete “Pastel do Pedro” onde gostamos de
passar um longo tempo batendo papo e fazendo lanche. Tem esse nome porque no
início ele só vendia pastel, mas depois incluiu outras coisas. O bom dali é que
dá para ver o movimento da praça ao lado pelas grades de proteção, assistir aos
jogos na quadra e beliscar alguns olhares másculos que por acaso nos vejam.
Quando chegamos ao fim da ladeira que iniciamos a subida Helena virou o rosto
para o lado, ela tinha essa mania de inclinar a cabeça em diagonal de lado para
evitar que seus cabelos descansassem em seus olhos, mas dessa vez esse não
tinha sido o motivo de ter feito isso.
-Não
fala que ele passa direto. – Disse apontando com os olhos um menino que vinha
em sentido contrário.
É
Lorenzo que parou à minha frente olhando-me admirado como sempre fazia toda vez
que me via. Baixo, de óculos, tem uma pele branca e seus cabelos são bem curtos
e encaracolados. As meninas dizem que é a fim de mim, mas eu não concordo, ele
é apenas um amigo de infância bem prestativo. Gosto dele, sempre faz tudo que
eu peço e está por perto nas horas que eu preciso. Vive me dando presentes.
Suas conversas são boas, gosto de conversar com ele.
-Os
ensaios da quadrilha vão começar. Já escolheu o seu par? – perguntou-me ele.
-Ainda
não.
-Eu
estava pensando...
-Agente
conversa amanhã, Lô. Marcamos com uma amiga e estamos atrasadas. – Interrompi.
– Tchau.
-Tchau.
Continuamos
nossa caminhada e quando estávamos próximas do Pastel do Pedro Helena falou:
-Você
está consciente de que ele ia te chamar para ser seu par?
-Por
isso que cortei na hora. Ficaria triste de dar um não a ele. É tão bonzinho
comigo.
-Porque
não disse que não iria participar esse ano? – Novamente Helena voltando a esse
assunto, só que agora Simone arregalou os olhos para mim, vou ter que me
explicar agora.
-Conversa
é essa, mulher?!
-Não
está nada decidido, dependendo do que Fred irá nos falar eu vou dizer se danço
ou não.
-Ah!
Nem acredito nisso. Vamos dançar, mulher. Faz isso não. Eu adoro a quadrilha.
-Sei
disso, Mone, mas tenha calma. Esperemos.
Nessa
hora paramos à frente da pastelaria escutando um barulho que veio do início da Avenida,
logo no topo da subida e a que faz esquina tanto com o Pastel do Pedro quanto
com a praça do Presidente Médici. Gritos e buzinas vieram aumentando sua
tonalidade a cada segundo, olhamos de lado para perceber do que se tratava. Uma
pampa azul carregava uns garotos vestidos com camisas de times e exibiam um
troféu, duas motos e um tanto de bicicleta acompanhavam logo atrás. Gritos de
“é campeão” se misturavam com a buzina da pampa e das duas motos.
-Garotos!
– Exclamou Helena entortando a boca para o lado.
-Eu
gosto de futebol. – Disse Simone acenando para um deles quando passavam por
nós. – De assistir, é claro.
-Só
você, Mone. - Indaguei observando o rapaz da moto dar uma arrancada e fazer sua
moto soltar um estalo tão alto que meus ouvidos zumbiram. Pus a mão neles
amaciando e olhando feio para o responsável pelo barulho.
-O
que está segurando a taça está olhando para você, Mone. - Informou Helena.
-Tô
vendo. - Anunciou a morena mordendo os lábios - Bonitinho.
-Vamos?
- Interpelei - Ainda quero chegar na hora do almoço em casa.
Quando
a comitiva dos alegres jogadores campeões sumiu na esquina atravessamos a
Avenida seguindo rumo ao bairro do Cruzeiro. Dobramos uma rua perpendicular e
encontramos a loja de material de construção na esquina com a Avenida larga do
Cruzeiro. Avistei o dono da padaria do outro lado fechar as portas, já estava
se aproximando do meio dia. Dobramos a direita e depois à esquerda para entrar
na ruazinha estreita em que havia uma garagem com paredes de pedra na esquina.
A casa dela era vizinha ao casarão com um muro também de pedra a que a garagem
fazia parte. Lígia abriu a porta com três papéis pequenos na mão, eram
coloridos e tinha a foto do seu avô à frente, olhei curiosa, mas não mencionei.
-Entrem.
– Ela chamou do terraço. – Tenho uma surpresa pra vocês.
-Não
vamos demorar. – Informei sentando-me em uma das cadeiras do terraço sempre de
olho em suas mãos, estava curiosa.
-Calma
amiga. Já viram o que tenho nas mãos?
-Estou
querendo saber o que é. – Disse Helena que parece ter feito a mesma observação.
-Entradas
para o aniversário do meu avô. Acabaram de ficar prontas e já separei três para
vocês.
-Uau!
Obrigada, mulher. – Exclamou Simone empolgada.
-Quem
vai tocar? – Perguntou Helena pegando sua entrada das mãos de Lígia.
-Zé
Calixto vai...
-Quê!?...
Não, mulher! Pode pegar esse bilhete de volta. – Reclamou Helena devolvendo o
pedaço de papel colorido nas mãos de Lígia - Tá louca! Forró de pé de serra.
Dou por visto o tanto de velho que vai ter lá. As velhas com aquelas saionas
arrastando no chão e os coroas com os cigarros boró que fede mais do que
esterco.
-Calma,
Helena. – Pedi a ela.
-Eu
não vou. – Indagou a indignada.
-Ah.
Vai ser interessante – Indagou Simone - Eu gosto de ver os coroas dançando. E
pé de serra não é só pra velho.
-É
não, esqueci que é pra matutos do sítio também. – Completou a loira chateada.
-Posso
falar? – Perguntou Lígia.
-Continue.
– Falei.
-Zé
Calixto!... – Deu uma pausa olhando para Helena – Vai tocar no início da festa,
umas oito horas e deve terminar lá pelas dez. Grafite vai até meia noite. – Ao
falar isso Helena abriu a boca espantada - E o DJ Paulinho vai tomar de conta
do restante da festa após a meia noite.
-Grafite!
– Exclamou Simone enquanto Helena ainda estava de boca aberta, pegou a entrada
de volta da mão de Lígia e falou:
-Essa
vai ser ‘A Festa’! – Indagou Simone. Sorri dando uma olhada no bilhete.
-Agora
vá pegar meu livro que já vamos embora.
Henrique
De
chuteira nos pés e com a camisa amarrada na cabeça estilo Bel Marques do
Chiclete com Banana subi na pampa de Diego e puxei Adriano para cima também,
Garrincha já estava encostado na parte da frente com a taça acima da cabeça
vibrando, Fábio subiu na garupa da moto de um dos jogadores reservas. Escorei-me
ao lado do centroavante cujo entregava a taça para o Mudinho que estava numa
moto ao lado da pampa, olhei para a tenda dos juízes e vi o carro da polícia. Acho
que foi por isso que os caras do Malvinas não vieram procurar mais confusão
conosco, sermos campeões em sua casa é motivo para um dia de confusão. Nunca ninguém
teve sucesso com tal feito. Eles nos olhavam enraivecidos do outro lado do
campo. Não demos a mínima, pulamos, vibramos, brincamos e gritamos. Estamos nem
aí para o que eles estão pensando, só queremos curtir nossa façanha.
-E
então? Podemos ir? – Perguntou Diego com um cigarro na boca.
-Taca
fogo nessa pampa, véi! – Exclamou Fábio logo atrás. Garrincha pegou a taça de
volta assim que Diego entrou na pampa arrancando rápido fazendo com que os
pneus catassem e jogassem poeira pelo ar.
Diego
sempre foi legal conosco. Não é bem da turma, mas de vez em quando curte umas
festas com agente. Filho de pais separados, mora com sua mãe. Seu pai vive em
Fortaleza cuidando da sua empresa. A casa que ele mora é bem bonita e grande,
fica no finalzinho do bairro do Presidente Médici, já chegando ao bairro do
Cruzeiro. As festas lá são boas, tem um terraço acoplado com a garagem com um
piso bem liso e excelente para dançar, quando alguém arranja uma namorada vai
se esconder no pomar ao lado. A sala é ampla e, de vez em quando, ele faz dela
uma boate. Mas essas festas geralmente só acontecem quando sua mãe não está em
casa, não que ele faz escondido, aliás, sempre diz a ela o que sempre faz. É
que ela não liga e às vezes acho que até gosta, está sempre indo dormir no sítio
da mãe, avó de Diego. Teve uma vez que encontramos ela saindo toda arrumada
numa noite de sábado, Fábio deduziu logo que ela iria curtir a noitada, mas
disse com um jeito desgostoso. Sei não, mas acho que ele é a fim dela. Jamais
comentei nem mesmo com ele próprio, fico na minha para não causar polêmica até
mesmo com Diego. Quarentona divorciada, cabelos pretos e grande, olhos escuros
e corpo escultural. Parecidíssima com sua filha, irmã de Diego, uma gata.
Fabíola,
a filha, nunca se entrosou conosco. Cumprimenta, conversa, mas sempre na dela.
Quase não participa das festas do irmão, prefere sair com as amigas do bairro
do Cruzeiro, uma de cabelos grisalhos e uma loira. Estão sempre por lá quando
estamos juntos de Diego em sua casa, como hoje que seu irmão prometera uma
festa em comemoração ao título. Era o nosso destino assim que saímos do campo
em comitiva pela rua principal do bairro das Malvinas, descemos a ladeira que
faz fronteira com o bairro do Cruzeiro e seguimos até o contorno do Santa Cruz,
dobramos mais a frente na esquina de uma casa de shows e fomos em direção à
nossa escola chamada Raul Córdula, dobramos no ponto final dos ônibus coletivo
e pegamos a rua em que ficava a praça ao lado da pastelaria do Beto. A casa de
Diego ficava no finalzinho dessa rua, logo à frente de um contorno triangular.
A
euforia era grande, gritávamos e as buzinas não paravam de tocar, com isso
todos que andavam pelas ruas onde passávamos paravam para olhar. Quando chegamos
à altura da praça vi uma camisa do time no piso da pampa e me abaixei para
pegá-la no intuito de sacudi-la no alto, quando agachei ouvi a arrancada da
moto do meia reserva e um estalo bastante alto, cocei o ouvido após senti-lo
zunir e quando subi já tínhamos passado da pastelaria. Garrincha olhava para
trás enquanto abraçava a taça. Diego rodeou o contorno triangular dando uma
rabiada parando bruscamente à frente de sua casa, com o solavanco batemos
nossas barrigas na grade do automóvel.
-Hoje
a festa não tem hora pra parar! – Indagou ele assim que saiu do carro.
Aline
O
sol estava se pondo quando saí de casa entediada nessa tarde de domingo e fui
sentar-me na calçada encontrando Helena escorada no portão da sua enorme
residência, veio ao meu encontro com seu andar de passarela, desfilando pelo meio
da rua. Mirtes, ao lado de Gorete, olhavam-na do outro lado com a boca
entortando em desprezo ao que sempre achou ser um exibicionismo fútil. Eu
sempre amei seu estilo de miss, seu jeito grandioso de ser, dona de si.
-LIINEÊ!
– Gritou uma voz que reconheci mesmo sem vê-lo, havia dobrado a esquina se
requebrando. – Eu nãão acredito no que acabei de ouvir, miga. Você não vai
participar da quadrilha?!
Era
Régis que falou essa ultima frase com as mãos nos quadris encarando-me. Já
foram contar a ele, essas meninas não têm jeito mesmo. Sua magreza exposta na
minha frente e com essa cara de brava, ou bravo, não contive e dei um sorriso
curto enquanto o via balançar seus cabelos longos e amarrados como um rabo de
cavalo. Ele adora a quadrilha junina e decerto estava desesperada com o fato de
eu não querer dançar este ano, deve ter sido minha irmã quem avisou a ele.
Daqui a pouco a quadrilha toda vai saber disso, agente não pode confiar em
ninguém hoje em dia. Helena encosta ao meu lado olhando-o com curiosidade põe
as mãos na cintura e pergunta:
-Quem
já foi dedurar pra você?
-Um
passarinho me contou. Pousou hoje cedo lá em casa. – Respondeu apontando o dedo
da mão direita para minha amiga enquanto a mão esquerda descansava em sua
cintura com a palma para baixo.
-Eu
não disse que desisti de dançar. – Falei – Só quero conversar com Fred primeiro
pra decidir.
-Mas
por que, miga? Tu nunca deixou de dançar um ano se quer. Desde quando agente
participa dessa quadrilha? Deixa ver...
-Desde
os seis anos de idade. – Completei.
-Então,
miga. Que foi que deu em tu? Acordou com uma coceira lá em baixo, foi? Eu sei
do que tu precisa. – Trocou a mão da cintura mudando de lado e a esquerda foi
para a ponta do lábio - De um namorado. Felipe, quem sabe.
-Deus
a livre. – Exclamou Helena fechando os dedos entre si e abrindo num gesto de
quem manda alguém ir embora – Aquele bombado bestalhão. Line num tá nem louca
de namorar ele.
-Já
falei pra vocês não ficarem induzindo namorados pra mim. Tenho raiva disso e se
querem minha amizade que parem por aí.
-Ah.
Ele é um homenzarrão. Ui! Se ele quisesse... – Indagou Regis olhando o
infinito.
-Para
de sonhar bixa louca. – Disse Helena sorrindo.
-Aff!...
Quem sabe?
-Tu
num toma jeito mesmo. – Falei.
-Mas
não mudem de assunto. – Afirmou Regis – Fala, Line. Porque tu num vai mais
dançar?
-Já
falei que não está nada decidido. Vou perguntar a Fred se serão os mesmos
passes de todos os anos. Se for eu estou fora.
-É
bem verdade que essa coreografia já está rodada. Desde que me entendo de gente
que sempre foi a mesma. – Disse ele. –Só acho difícil ele mudar. Eu queria que
mudasse, mulher. Se tu conseguir eu tiro meu chapéu.
-Bom.
Se for a mesma não danço.
-E
leva metade das meninas contigo. – Indagou ele.
-Não
nasci com elas. Se vão seguir minha opinião que arquem com suas culpas.
-E
tu achas que vou ficar feita besta lá sem tu, mulher? – Perguntou Helena com
olhar sério para mim.
-Nem
eu. – Completou Regis.
-Tu?!
Duvido.
-Oxe,
mulher! Três donos de quadrilha me chamaram para dançar. A do Cruzeiro e a do
Santa Cruz falaram comigo semana passada. Fabrício, como vocês sabem, vive me
rodeando pra ir pra lá.
-Quer
arranjar uma inimizade com Fred? – Perguntou Helena.
-Você
sabe muito bem que a rivalidade entre os dois é grande. – Completei. – E tem
Clodoaldo, vai ser uma decepção pra ele. Se mete a besta em ir pra lá que vão
lhe expulsar da rua.
Fabrício
é o dono da outra quadrilha do nosso bairro, seu pavilhão sempre é montado na
sua rua que fica depois da ladeira, perpendicular ao início da rua principal, a
rua da pastelaria de Pedro.
-Sou
dono de minha própria vida, mores. – Falou pondo, agora, as duas mãos na
cintura. – Então supomos que ele ponha passes novos. Com quem a senhorita irá
dançar?... Felipe?
-Lá
vem você com isso novamente. – Indaguei já querendo ter raiva.
-Só
perguntei por que foi com ele que você dançou no ano passado. – Falou Regis com
um olhar de esguelha - Já pensou que eu estava jogando o gato pra cima de você?
Mulheer! Estou muito convencida de que tu tá precisando de um namorado.
-É
o que eu sempre digo. – Falou Helena para meu desgosto. – Vive espantando todo
tipo de pretendente.
-Deixa,
miga. – Disse Regis olhando para a loira - Tenho certeza de que o dia pra ela
arranjar um namorado, e sério, está bem próximo.
-Xii!
Acho que não, Regis. – Completou Helena.
-Estou
convicta. – Afirmou com eloquência, o Regis - A única coisa que não tenho
certeza é do nome desse bofe. Se Chico, João, José ou...
Henrique
-Henriquee!
– Gritou Fábio do terraço da casa de Diego. – Vamo logo, doido. As mina tão já
chegando. Tu num quer encontra-las fedendo a suor, tenho certeza.
Saí
de trás do balcão do bar na sala de jantar e fui encontra-lo juntamente com
Adriano e Garrincha, Diego já tinha ido tomar banho e a casa que a pouco foi
palco de uma comemoração masculina estava sendo preparada pela empregada para
acomodar uma festa noturna. Dona Judith era de uma cidadezinha do sertão e
morava num quartinho atrás da casa e sempre foi bastante prestativa, cuidou do menino
Diego desde bebê e são quase como mãe e filho. Apesar da mãe ser muito boa para
ele, Dona Judith é quem faz tudo que é relacionado ao menino que agora é um
rapaz. Ficou acertado de irmos tomar um banho e vestir uma roupa melhor para a
noitada de farra, Diego ligou para seus contatos e convenhamos, seus contatos
são em sua maioria mulheres. Por isso que a empolgação dos meninos é grande e
esse aperreio de Fábio denunciava isso.
Metade
do time confirmou a vinda, apenas Cirilo que foi embora não era nem quatro da
tarde reclamando que ia levar um esporro da esposa por ter perdido o domingo em
família, que ficou sem saber do prolongamento da festa. Festa essa que foi repleta
de cerveja e música até agora, apesar de não bebermos muito, sempre tem um ou
outro que exagera. Dessa vez foi Gladson que ficou bêbado antes das três da
tarde. Buba o levou para casa e não voltou, esse também seria desfalque a noite,
sempre andam juntos. Garrincha abriu o portão e saímos no crepúsculo em busca
de nossas casas.
-Vamos
comprar o rum na volta, passamos na bodega de Seu Miguel. – Propus.
-Diego
não vai gostar. Ele disse que não precisava comprar nada. – Avisou Garrincha.
-Henrique
está certo. Já basta o cara ceder a casa e o som. – Ajudou-me Adriano.
-E
que som! – Indagou Fábio. – Três em um com dois toca-fitas. Vocês viram os
discos que ele tem?
-Beto
Barbosa! – Falou Adriano – Caoma.
-Guns
and roses, Scorpions e Bon Jovi. – Concluiu Fábio.
Aline
A noite
de domingo veio com o mesmo tédio de outros dias. A ultima semana de férias
inicia amanhã, ainda bem. Já não aguento mais esse marasmo sem ter nada para
fazer nestas férias e a deste ano parece que foi pior, pois não teve uma festa
se quer. Puxei meu diário para cima da minha cama e comecei a escrever coisas
sem sentido, desenhar corações e pintar gravuras de um livro velho. Peguei uma
revista de moda que eu havia comprado ano passado e comecei a folhear vendo as
belas roupas das magras modelos que sorriam para mim, mas eu sorria era para os
vestidos belos que tanto cobiçava. Muito caros! Fechei a revista e joguei-a na
cômoda, uma foto cai debaixo da cama e me contorci toda para pegar com preguiça
de levantar-me, metade de meu corpo estava em cima da cama e metade estava fora
inclinando para alcançar a foto. A porta se abriu, tomei um susto,
desequilibrei e caí. Era Mirtes, minha irmã que sorriu juntamente com Simone
que encostava por detrás dela.
-Tá
fazendo o quê? – Perguntou Mirtes.
-Não
é da sua conta. - Olhei Simone de cabeça para baixo com a mão esticada
segurando a foto por debaixo da cama – Entra Mone.
Esperei
minha querida irmã sumir de vista e puxei a foto para o claro do quarto. Tive
medo de ser algo em que ela não podia ver. Dei de ombros e joguei o retrato
conosco, de uma quadrilha de três anos atrás, todas vestidas com saias
estampadas, chapéus ornamentados e uma maquiagem de matuta, com pintinha e
tudo. Simone puxou para si e sorriu contente. Isso para ela é uma maravilha, adora
tudo que vem da quadrilha. No ano dessa foto ela havia sido eleita a rainha do
milho e estava toda de amarelo ouro
parecendo uma espiga.
-Esse
foi o ano em que fiquei com Noberto.
-E
que também dançou com você, aliás, não lembro de algum ano em que você não
namorou o garoto que dançou.
-Também
não é assim, né.
Guardei
a revista, a foto e o meu diário na gaveta da cômoda e sentei-me na cama para
olhar a hora próxima do jantar. Virei para Simone e perguntei:
-Que
te trazes aqui a essa hora? Gorejar o jantar, talvez, do jeito que você come
tenho quase certeza.
-Vim
só avisar que Fred está vindo aí para falar contigo.
-Mas
num só era amanhã a noite?
-Tu
sabe como ele é. Agoniado todo. – Falou Simone pegando meu batom rosa e se
dirigindo ao espelho. – Pensei até que já estava aqui.
-Você
veio ajuda-lo a me convencer a não desistir de dançar. Eu lhe conheço, Mone.
-Não
é bem isso.
-Olhe
lá se num combinaram antes de vir.
-Tudo
bem. Ele me pediu isso quando viesse falar contigo... Ô, mulher! Pensa com
bastante carinho no que vai dizer a Fred. Por favor, amiga. Sem você a
quadrilha já era.
-A
quadrilha já era faz tempo. – Falei - Ano passado quase que não completava os
componentes. Diminui o número de participantes a cada ano.
Nessa
hora a campainha toca.
-Chegou.
-LINEEE!
É pra vocêê! – Gritou minha mãe da porta da sala.
Fred
sentou-se numa das quatro cadeiras do terraço e olhou desconfiado para Simone
que se sentou ao seu lado como que escolhendo o time que defenderia. Sentei-me
de frente aos dois e esperei ele começar a falar. Estava de barba feita, não
parecia aquele homem de quarenta anos de sempre, sua barriga se destacava das
demais partes do seu corpo. Usava uma camisa de botões que estavam atacados até
o penúltimo mostrando uma parte do peito queimado do sol. Trabalhava como pedreiro
e acho que sua pele mostrava que nem sempre vivia debaixo de sombras, tanto o
rosto como parte dos braços tinham uma tonalidade encarnada. Gosta tanto de
quadrilha que às vezes penso ele deseja mais do que a própria esposa, Dona
Candinha.
-Então
você está pensando em não dançar quadrilha este ano? – Perguntou-me ele.
-Ainda
não.
-Não
entendi.
-Estou
cansada de dançar sempre a mesma coreografia todo ano. Nada muda, nem um passe
de lado agente não pode fazer. – Ele encarou-me meio que pensando no que falar
e veio com uma desculpa nada convincente.
-É
que é tradição, Aline. Todas as quadrilhas são assim e se mudarmos vamos deixar
de ser uma quadrilha e ser um não sei o quê, talvez um grupo de dança ou coisa
qualquer.
-Será
que não é por isso que o povo está deixando de dançar como dançava antes. –
Respondi.
-Nem
tanto. – Falou ele.
-É?
Então quantos componentes tinham há cinco anos?
-Num
vem com essa não, Aline.
-Responda.
Quantos?
-Cento
e vinte. Trinta casais de cada lado. – Respondeu ele com a voz serena como que
sendo desarmado pela minha argumentação.
-E
ano passado? – Repliquei.
-Sessenta.
– Respondeu Simone. – Quinze casais de cada lado, mas isso não tem importância
pra mim. O que vale é a qualidade da quadrilha.
-Quanto
mais gente melhor. – Indaguei – Fica mais bonito de ver.
-Você
pode estar certa em parte. – Argumentou Fred – Hoje em dia o pessoal não está
dando tanto valor a uma quadrilha quanto antes, mas isso tem que ser combatido
com força de vontade dos componentes que participam. Não desista agora, esse
ano eu tô com fé de que as coisas vão ser melhores.
-Igual
todos os anos e sempre a mesma cena com poucos participantes e uma quadrilha
mixuruca. – Falei olhando para o céu limpo lá fora.
-Se
ano passado contigo já tinha pouco, sem você vai ser pior. Pense direitinho,
Aline, por favor. – Suplicou ele.
-Não
tem conversa, adiei essa decisão por dois longos anos e agora estou decidida.
Vou aparecer sábado no primeiro ensaio para assistir, se os passes forem os mesmos
pode esquecer minha participação.
-Vou
pensar nisso. Amanhã vamos começar a montar o pavilhão, tenho ainda uma semana,
mas já vou adiantando, não dá para mudar assim de uma hora pra outra.
-Eu
sei, Fred. Mas pelo menos faça alguma mudança, nem que seja pouca. – Concluí.
Ele
levantou-se e saiu fechando o portão para deixar Simone fitando-me com um olhar
sereno. Ficamos em silêncio por um minuto, levantei-me chamando-a para irmos à
cozinha, pois minha mãe já tinha posto a mesa do jantar. Sentei numa cadeira e
ela na minha frente, Mirtes já tinha começado e mamãe pôs a sopa em meu prato e
no de Simone. Vi uma grande quantidade de batatinha no dela, mamãe sabia que a
morena gostava. Babona de minhas amigas, essa minha mãe.
-Isso
quer dizer que vamos continuar? – Perguntou Simone olhando para mim antes de
começar a degustar a refeição.
-Você
tem esperanças dele mudar algo?
-Não.
– respondeu ela triste voltando a encarar a sopa.
-Falam
da quadrilha? – Perguntou Mirtes.
-Não
é da sua conta. – Respondi.
-Fred
vindo aqui em casa falar contigo. Sei não, mas ele dá muito valor a quem não
merece. Não sei por que se preocupam tanto com o fato de você estar descontente
com a quadrilha. Pra mim seria até melhor sem você dançando.
-Por
quê? Meu brilho te ofusca? – Perguntei com um sorriso irônico vendo-a afastar o
prato vazio e levantar-se, Simone abafou uma risada com uma colherada bem cheia
pondo-a na boca.
-Este
ano eu serei a noiva. – Disse minha irmã toda altiva. – Já existe até um
grupinho entre os meninos pra buscar votos pra mim.
-Coitada.
Se tá dizendo isso pra me atingir perdeu seu tempo. Não tenho pretensões pra
esse cargo.
Ela
deu uma rabissaca e sumiu pelo corredor da casa deixando nós duas a concluir a
sopa, que por sinal estava deliciosa, minha mãe sabe cozinhar bem. Simone
terminou seu prato, olhou para mim e falou:
-Tu
sabe que ela diz isso por que a maior parte dos membros da quadrilha te quer
como noiva.
-Infelizmente.
Daí tu tira a ideia de que eu já não quero dançar... e ser a noiva então!
-Mirtes
deseja esse cargo já faz muitos anos.
-Por
mim ela pode ficar com ele. – Falei empurrando meu prato para o centro da mesa.
– Fred devia não fazer eleição este ano, era só entregar esse posto a ela e
pronto.
-É.
Vamos lá pra fora ver se tem algo pra fazer.
Costumamos
nos reunir sempre na calçada da minha casa, a rua onde moramos é bem agitada,
toda noite têm muita gente nas calçadas conversando ou falando da vida alheia.
Essa segunda opção é mais provável. Helena mora no casarão quase de frente a
minha, Simone mais para cima, Gorete lá no início e Karen a duas casas da
minha. Karen é uma morena afro bem séria e de cabelos sempre amarrados, uma
altura que não passava do ombro de Helena. Estava sentada numa cadeira na
frente do portão da sua casa, acenou para nós e continuou lendo um livro o que,
aliás, é o que mais gosta de fazer. Algumas crianças corriam pelo entorno da
extensa rua, homens e mulheres conferenciavam, para variar, nas diversas
calçadas ao longo dela. Sentei-me no chão de pedra escorando as costas no muro
de cerâmica, Simone fez o mesmo e Helena abriu o portão do outro lado vindo
juntar-se a nós.
-Sentiu
nosso cheiro? – Perguntei.
-Estava
olhando pela brecha do portão. Aff! Não consigo ficar nesta rua sem nenhuma de
vocês.
-Lá
vem a exibida. – Informou Simone apontando a esquina com a cabeça.
Ela
estava falando de Fabrícia, que apareceu na rua com seu rebolado extravagante.
Parda, algumas poucas sardas no rosto, olhos grandes, cabelos encaracolados e
sempre molhados. Tem um corpo de dar inveja e se veste bem, hoje vinha usando
uma calça jeans apertada na cintura e uma blusa de malha delineando seus seios.
A barriga a mostra, bem exibida como Simone disse, mas se a morena tivesse essa
barriga acredito que também iria sair exibindo-a por aí. Encostou ao lado de
Helena cuja estava em pé com a mão na cintura e perguntou para mim:
-Você
ainda tem aquela tiara de cristal verde, amor? – Só não gosto desse “amor” que
ela fala para todos.
-Tenho...
amor. – Falei ironizando seu bordão e ela sorriu. – Vai a alguma festa?
-Você
é engraçada, amor. Vou, sim. Diego me chamou para uma comemoração de ultima
hora na casa dele. Parece que é de um time de futebol que venceu algo.
-Aquele
que vive se exibindo com um microsystem na praça? – Perguntou Helena.
-Sim,
amor. Ele é um fofo. Sempre que faz algo lá me chama. – Respondeu Fabrícia com
o braço esquerdo no peito apoiando o direito que gesticulava a cada frase dela.
– Tenho um vestido verde que combina perfeitamente com tua tiara, Aline.
-Certo,
amor. Vou buscar. – Falei vendo-a sorrir novamente.
-Ela
é bem engraçada.
Não
gosto de emprestar minhas coisas, mas sei que Fabrícia tem o maior cuidado com
tudo. Fico mais a vontade de emprestar algo a ela do que a Simone, essa ultima
é muito desleixada e se não fosse tão minha amiga não emprestaria. Abri a
gaveta da minha cômoda e peguei a linda tiara com detalhes de cristal verde,
ganhei da minha tia.
-É
lindo, não é. – Falou Fabrícia ao segurá-la com todo cuidado. – Pode deixar,
amor, que eu vou cuidar dela como se fosse meu.
-Sei
disso. – Falei voltando a sentar-me. – Sei tanto que são poucas as pessoas que
empresto ele.
-Ah.
Amor. Obrigada. – Olhou para cada uma de nós e concluiu. – Tchau amores. –
Virou nos calcanhares e seguiu de volta rumo a esquina.
-Às
vezes eu penso qual das duas gosta mais de festa. – Argumentou Helena. – Se
Brícia ou Mone.
Sorri
olhando Simone fazer cara feia para ela sem ter argumento para se defender. Na
minha opinião a morena Mone é mais festeira do que a parda Brícia. Fabrícia é
mais de se exibir, gosta de mostrar os belos ou ricos namorados que arruma. Já
Simone é muito de dançar e namorar. Eu mesma não sei onde elas arrumam tanta
disposição para essas coisas, prefiro algo mais tranquilo, ou um namoro mais
sério. Helena tem a mesma opinião que a minha e acho que isso nos faz ficar
mais ligadas uma na outra.
Fim do capítulo 02
Literatura Forrozeira
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