sexta-feira, 15 de junho de 2018

Paixões, Futebol e Forró



1 - UMA FINAL AGITADA

Henrique
           
            -Passa a bola, Henrique!
Disse Garrincha passando ao meu lado. Não contei conversa, de três dedos, meti a pelota por entre os zagueiros para o mesmo matar no peito e encher o pé no canto direito do goleiro do Malvinas Futebol Clube. Um a zero. Saímos na frente nessa final do campeonato do Bairro das Malvinas. Nosso centroavante veio ao meu encontro agradecer o passe, mas eu corri mostrando a lateral do campo dizendo:
-As garotas! As garotas! Vamos comemorar com elas.
-Lá vem ele. Lá vem ele. Ele não é um pão?! – Disse uma baixinha de cabelos encaracolados apontando para mim.
            Do jeito que viemos entramos naquela agitação que as mesmas faziam em celebração ao gol. Pulamos e gritamos. Garrincha fez uma coreografia com pés e braços sendo seguido por algumas torcedoras. O time chegou para juntar-se conosco fazendo um amontoado de jogadores no canto esquerdo do nosso lado do campo. Do outro lado, o direito, bem como adjacente a Avenida, encontravam-se uma multidão de pessoas a assistir a essa final que se dava no principal campo do bairro. Ao voltarmos pus o braço enlaçando o pescoço de Garrincha, mais baixo do que eu, cabelos encaracolados caindo no ombro, um pouco forte e andar cambaleante, dribles desconcertantes e gingados que lembram o jogador cujo nome deriva seu apelido. Um dos meus melhores amigos. Sem percebermos, o zagueiro adversário apareceu detrás de nós e passou próximo tentando esbarrar seu corpo no nosso.
            - Você é um palhaço. Tá pensando que nos irrita com aquela dancinha?!
            - Já se irritaram. – Disse Fábio próximo.
            - Cala boca, Fábio. – Falei.
            Puxei Garrincha para o centro do campo com mais rapidez e pedi para não se importar. O provocador ficou olhando com cara de poucos amigos e o jogo recomeçou. A posse de bola estava com o time do Malvinas que cadenciava o jogo em seu território. Gladson, nosso lateral direito aproximou-se e me alertou:
            - Puxa a orelha de Garrincha. Tú sabe como ele é. E Paulinho Cabeça-Quente não é flor que se cheire.
            - Quem?!
            - O cara que falou com vocês.
            Confirmei com a cabeça e fui dar o combate no meia-esquerda que passava com a bola ao nosso lado. Levei um drible olhando para Buba que percebeu o avanço dele, deu o bote com precisão e tomou a bola tocando para mim, deixei-a tocar na parte interna do meu pé passando-a por baixo de minhas pernas, virei dando de cara com um marcador. Toquei de lado e corri em busca da redonda deslizante no curto gramado central do campo, percebi Fábio correndo em sua velocidade flutuante no solo barrento da lateral direita e planejei a jogada com todo carinho. Olhei para a bola, mais próxima agora, de três dedos será melhor, pois encontraria nosso velocista empolgado com mais efeito, mas senti uma pancada forte em meu tornozelo. Caí descontrolado no chão duro, ao fim do pequeno gramado, onde se encontrava uma concentração de silte mais compactada. Rolei três vezes notando uma dor em meu cotovelo, no joelho e no local da pancada. Minhas roupas sujando-se, a poeira a me cobrir e uma cólera subindo dentro do meu peito. Sem me importar com as dores levantei ouvindo o apito do juiz a marcar a falta e encarei meu algoz, ele fez o mesmo mostrando seus peitos e encostando seu rosto próximo ao meu.
            - Vai encarar! Tá pensando que eu tenho medo?!
            - Entra devagar, mermão! Vocês estão querendo briga? Se for para brigar nós vamos brigar. Se for para jogar nós jogaremos. Vocês decidem.
            Com uma fisionomia bastante séria não afastei meu rosto do dele até chegar a turma do deixa disso.
            - Vamos parar com isso! – Disse o árbitro – Vocês querem um vermelho?!... Ein!
            Toquei de lado para o mudinho, o volante que me ajuda na armação de jogo. Forte, cabelos enrolados, um metro e oitenta de altura e olhos verdes. Um vigor físico de dar inveja, tanto volta para marcar ao lado de Buba como arma jogadas junto comigo, acho que temos muita sorte de tê-lo em nosso time. Passei a mão no joelho e vi um pouco de sangue, mas não sentia mais dor, talvez pela adrenalina. Percebi Pelezinho, nosso ponteiro esquerdo perder a bola para o lateral deles. Rodeei o olhar a procura de Buba achando-o do lado direito. Léo, nosso lateral esquerdo, encontrava-se sozinho para marcar dois malvinenses que corriam em sua direção. Sobrou para mim. Não contei conversa e corri na marcação de um tentando dar o bote sem sucesso, não sou um bom defensor, nosso lateral tomou a frente dando um leve toque na bola fazendo seu detentor perder o controle da mesma, rapidamente tocou de lado e correu por trás de Léo, acompanhei percebendo a jogada e antecipei o toque do segundo jogador para ele, esbarramos caindo fora de campo. Ao levantar-me vi uma garota que me tomou toda a atenção da jogada seguinte. Uma magra, alta, olhos grandes, cabelos pretos e lisos descendo pelas costas, encontrava-se por detrás das meninas da algazarra do gol. Encarei recebendo a mesma ação dela cuja sustentou até eu desviar e entrar em campo retornando às atenções para a partida.
            -Também percebi. É linda. – Disse Tuta, meu primo e zagueiro central do time quando a bola se perdeu pela linha de fundo para tiro de meta. Porte físico compatível com o meu, da mesma altura, cabelos curtos e lisos, olhos bem azuis.
            - Se interessou? – Perguntei.
            - Não.
            - Vou namorar com ela.
            - Você e sua presunção.
            Corri para o meio de campo com um leve sorriso e vi Fábio em disparada com a bola, sendo marcado pelo lateral esquerdo malvinense. Parece uma jogada boa. Apressei o passo me aproximando da grande área, a bola sobrevoou as cabeças defensivas e ofensivas que ali se encontravam e uma mão enluvada deu um tapa nela fazendo-a vir para meu lado, preparei o chute de primeira, mas antes disso um vulto passou na minha frente dominando no peito o objeto de meu desejo. Foi o meia direita deles cujo deu uma pancada nela para frente e correr com uma velocidade forte o bastante para fazer com que eu não conseguisse recuperar a jogada. Um drible da vaca em Buba fez com que restasse apenas Tuta e nosso goleiro, Adriano. Ao lado o centroavante acompanhava a maratona suplicando o passe para seu companheiro. Inteligentemente o meia prosseguiu o bastante em prol de o nosso zagueiro aproximar-se o necessário e evitar a interceptação da jogada. Soltou a menina de nossos desejos redondinha nos pés do desesperado atacante cujo ficou sozinho com Adriano... Caixa!
            - Não pode ser! – Lamentou Garrincha.
            De chapa, o centroavante meteu no canto tirando do goleiro e correu para o abraço. 1 a 1. Cirilo ficara parado com o braço direito sobre o peito e o esquerdo apoiado coçando o queixo, nosso treinador é sereno nessas horas. Fui bater o centro para recomeçar o jogo vendo o desanimo aflorar de repente no rosto dos jogadores do nosso time, fato consumado por todo o restante do primeiro tempo quando não conseguimos mais emplacar todo aquele bom futebol de antes do gol. O juiz encerra sem nenhum acréscimo apontando o intervalo de quinze minutos dirigindo-se para a tenda improvisada dos organizadores da competição. Seguimos na direção oposta para encontrarmos o local onde deixamos nosso material, um pé de manga alto que jogava uma sombra bem ampla próximo da trave defendida por nosso arqueiro. Cansados, mas não entregues a exaustão nossos atletas acomodaram-se procurando fugir do sol causticante dessa manhã clara de domingo. Água, laranja e melancia fez a hidratação necessária dos vários companheiros de futebol. Olhei de lado e saí rodeando todo esse pessoal, atravessei o material e desviei dalgumas matas rasteiras para evitar ser visto pelas meninas torcedoras. Aproximei por detrás da magra alta e me pus ao seu lado.
            - Está gostando do jogo? – Falei e ela tomou um pequeno susto percebendo minha presença. Sorriu e respondeu.
            - Estou aqui pela folia. Não entendo nada de futebol.
            - Por opção ou oportunidade de aprender? – Perguntei observando seus olhos castanhos.
            - Meu ciclo de amizades não me dá opção. – Disse-me ela voltando seu rosto para os jogadores reservas dentro de campo que dominavam uma bola.
            - É oportuno saber.
            - Não vejo objetivo para tal. – Indagou.
            - Quando vier assistir aos nossos próximos jogos não vai ficar tão perdida em nossos atos lá dentro. – Falei apontando o campo com a cabeça.
            - Não encontro motivo para voltar.
            - Só o fato de entender de tal esporte já o encontra.
            - Talvez. – Disse ela num sorriso que soou em minha opinião como uma oportunidade de seguir com meu objetivo.
            - Se o professor for digno de sua aluna?
            - Fala de você? – Perguntou ela.
            - Claro.
            - Quem sabe? – Indagou com outro sorriso mais cativante que o outro.
            - Vou tomar essa resposta como um sim. Até mesmo por que veio acompanhada do mais belo sorriso que já vi.
            - Além de professor, galanteador.
            - Hoje às oito da noite, na Praça Presidente Médici, teremos nossa primeira aula. Até mais tarde, tenho que ir, o jogo vai recomeçar. Aliás, qual o seu nome?
            - Marta.
            - Henrique. Tchau.
            Corri para dentro do campo aproximando-me do pequeno grupo formado na meia lua. Adriano, Garrincha, Fábio, Gladson e Tuta. A fala foi do primeiro:
            - Você não tem jeito, Henrique.
            - Fiz nada.
            - Se eu te conheço bem – Indagou Fábio – Tu já marcou um encontro com ela.
            Sorri e saí em direção ao centro do campo. Garrincha me acompanhou deixando a turma da defesa onde estava. Fábio tomou o rumo da sua ponta direita apontando para mim com seu jeito brincalhão afirmando:
            - Foi sim. Olha a cara dele.
            Garrincha recebeu a bola ajeitando no ponto inicial da partida, pôs um olhar curioso para meu lado como se cobrasse resposta. Pisei a bola e falei:
            - Hoje à noite na praça. – Arrastei o pé fazendo a redonda dirigir-se para seu lado recebendo um sorriso com um balançado de cabeça numa negativa simpática de um amigo que recebia uma notícia irônica. Tocou mais atrás e correu para a grande área adversária.

Aline
            Nem terminei de pentear o cabelo direito e Helena entra no quarto me apressando, se senta na minha cama e puxa meu diário rosa de cima do travesseiro, folheia algumas páginas e para no dia de ontem. Sempre curiosa! Encaro-a com ar de desagrado, mas só para fazer charminho, não tenho segredos com ela. Toda vez que a vejo sinto inveja de seus olhos, bem verdinhos. Acho o máximo. Ela é bem bonita. E convencida também. Cabelos lisos, loiros e caindo nos ombros. Sua pele é branca, seu nariz afilado, sua boca têm lábios finos e seu corpo é magro.
            -Fred já começou os preparativos para a quadrilha junina. - Disse ela ainda com os olhos no meu diário. Continuei calada. Não queria falar disso. - Ele mandou chamar agente, mulher. Quer conversar conosco.
            Continuei calada, não queria dizer a Helena a minha pouca vontade de participar este ano. Estava descontente com a quadrilha desde o ano passado. Gosto de participar, mas de um tempo para cá essa vontade foi acabando. Sei não, talvez isso tenha a ver com o fato de termos crescido. Participamos dela desde que éramos criança. Ou talvez tenha a ver com as coreografias que não mudam.
-Toda vez que falo na quadrilha você fica desconfiada. Me fala o que está havendo. – Disse ela na mesma hora em que a campainha toca.
-Tenho pensado no assunto, Helena. – Abri a gaveta e tirei o prendedor de cabelos rosa da Minnie mochila – Dependendo da conversa que teremos com Fred eu decido se vou participar.
-Se você não for eu também não vou.
-Festa no Grupinho Escolar.
Disse Simone aparecendo de repente no quarto dando um susto em nós duas, derrubei a escova no chão e quase derramei o perfume francês que ganhei de presente. Olhei para ela chateada, mas sorri vendo o rosto corado dessa morena estabanada, seus cabelos encaracolados pareciam que estavam mais brilhantes hoje. Tenho a impressão de que toda vez que ela está empolgada com alguma coisa seus cachos brilham mais.
-Não vamos. – Falei decidida apanhando a escova e ajeitando o perfume na cômoda.
-Ah! Mulher. Por que não? – Perguntou Simone.
-Você sabe como vai ser a entrada? – Perguntou Helena para ela.
-Como?
-Mulher não paga. – Respondi.
-E não é melhor. – Indagou Simone sorrindo. – Vamos entrar de graça.
-Claro que não, Mone. – Falei – Principalmente para você que adora namorar. Duvido que arranje um numa festa cheia de garotas.
-Tem razão. – Rendeu-se ela entristecendo.
-Nesse sábado da festa, vamos assistir Ghost em minha casa. Só nós três. Seção cinema. – Disse Helena enquanto eu puxava a caixinha dos brincos da terceira gaveta.
-Mas num já assistimos?
-Não canso de ver. – Falei trocando o brinco de argolas pelo da Minnie.
-É! Então vamos assistir Ghost, do outro lado da vida.
-Mas não se preocupe. – Disse Helena levantando-se da minha cama. – A festa da Sab do Cruzeiro promete. Aniversário do avô de Lígia.
-E você sabe como são as festas que ele faz. – Falei.
-Ele cobra entrada em seu próprio aniversário! – Indagou Simone.
-Mas trás banda pra tocar. Diferente das outras festas que é som de fita cassete e disco vinil.
-É verdade. – Concordou a morena. – E festas na Sab do Cruzeiro são sempre boas.
-E por falar no aniversário do avô de Lígia. Já estou pronta. Vamos pra casa dela.
Lígia é nossa colega de classe, nossa escola fica bem no centro da cidade, ela mora no Cruzeiro. Vamos pegar meu livro de matemática que deixei lá.

Henrique
            Quando toquei para Garrincha iniciando o segundo tempo corri, três passos à frente recebo de volta do Mudinho que correu para o ataque, viro recebendo uma trombada de lado caindo no chão de costas.
            - Tá pensando que aqui é aquele bairrozinho do Presidente Vargas que vocês mandam e desmandam? Aqui vocês vão ter que engolir seco. – Disse o volante deles que tinha uma face branca, olhos pequenos, cabelos enrolados e curtos, meio loiros, quase da mesma altura que eu, magro com alguns músculos pequenos mostrando veias de um halterofilista raquítico. Demonstrou ousadia. Talvez seja metido a brigador.
Pus a mão no chão como apoio para levantar-me bem próximo de seus pés, levantei-me ficando frente a frente com seu rosto numa fisionomia séria encarando seus olhos. Sorri ironicamente e saí. Bati a falta errada nos pés do adversário cujo correu em direção ao seu ataque, Buba tomou a responsabilidade de recuperar à jogada para si correndo atrás dele tentando tomar a bola, quando viu que não iria conseguir pulou em suas pernas fazendo-o rolar três vezes no chão, levantou-se, passou por cima de seu braço e foi encostar-se ao lado de Tuta. O volante deles queria tomar satisfação, mas foi contido pelo meia-esquerda cujo arrumou a redonda com carinho para bater a falta. Magro e de média estatura, cabelos meio loiros.
-Quero nem ver. – Disse Garrincha. – Hélio é o melhor batedor de faltas da região.
-Ei! Respeita Henrique - disse Fábio com um leve sorriso.
-Tá bom. Depois de Henrique.
O árbitro mostra o local da barreira e Adriano ajusta um pouco mais à esquerda voltando para o centro do gol. Hélio, assim Garrincha o chamou, volta três passos largos para trás e mede a distância com os olhos até a trave, escuta o apito e corre batendo com jeito na bola fazendo-a encobrir o obstáculo humano a sua frente e tomar o rumo do ângulo esquerdo da baliza do nosso arqueiro. Tive medo de levar mais um gol, mas uma mão enluvada bastante grande tocou na bola fazendo-a se perder pela linha de fundo em escanteio.
-Tudo bem que ele é o melhor batedor de faltas da região. – Falei – Mas Adriano é o melhor goleiro.
Os dois sorriem voltando para suas posições. Olho para nosso treinador, Cirilo, tenso do lado de fora consultando seu relógio de instante em instante. Chama Lúcio para conversar, o meia-direita reserva do time, mas que também joga de ponteiro. Uma pontada no coração reflete uma pequena angústia em ser substituído nessa final.
-Pelezinho é quem vai sair, mermão. – Diz Garrincha passando por mim e apontando para lá. – Você acha que ele iria tirar o melhor jogador do time? E, ainda, numa final?!
-Não sou o melhor do time.
A saída do nosso ponteiro-direito me deixou aliviado. Não gosto desse título de melhor jogador do time. Não me acho isso. E não quero sair desse jogo, estou com muita vontade de jogá-lo como a nenhum outro até agora. Os nervos estão à flor da pele, de quase todos os jogadores. Conquistar esse título é uma façanha quase impossível, pois o Malvinas não admite que outro time o faça e para isso faz tudo para evitar que uma equipe de fora leve a taça para outro bairro, inclusive apelar para a violência numa forma de intimidar. Vejo nervosismo nos olhos de alguns jogadores deles, isso inclui o zagueiro. Talvez pelo fato de não estarmos nos entregando a essa intimidação, fato visto, por exemplo em Tuta que deu um puxão na camisa do ponteiro e encarou-o mostrando que não tinha medo deles. Buba não tirou o pé em nenhuma dividida e entrou duro em todas sempre levando a melhor. Marcos, esse sim, companheiro de zaga do meu primo, forte como ele só e num leva desaforo para casa, sempre coloca o corpo para os atacantes adversários esbarrarem. Por outro lado Fábio, brincalhão, faz a jogada e solta uma piada para seu marcador, mas Garrincha faz pior, driblador de primeira fica fazendo graça na frente deles em quase todas as jogadas.
Como sei que isso, uma hora não vai dar certo, o nervosismo e impaciência do Malvinas em não estar dominando o jogo do seu campeonato em seu próprio campo explode na hora em que nosso centroavante dá três pedaladas, pisa na bola solta um beijo irônico para o zagueiro, põe a bola por entre suas pernas se desviando para encontrá-la do outro lado. O marcador, em seu torpor de fúria vira-se e mira sua perna num chute que acerta sua panturrilha fazendo-o desequilibrar e cair. Percebendo, como uma premonição, o que ia acontecer ao ver Garrincha cair com a mão apoiada no chão enchendo-a de areia e ajeitando-se para levantar-se, corri para seu lado. Por outro lado o zagueiro caminha para seu encontro com a expressão de um touro querendo atingir seu domador-provocador. Nosso centroavante levanta-se jogando a porção de areia no olho dele que baixou a cabeça com as mãos no rosto tentando limpá-la, deu um pulo e acertou uma pesada em seu peito fazendo o zagueiro grandalhão cair no chão de costas. Foi o estopim para a confusão.
O volante deles, que estava ao lado, armou um soco para Garrincha tão forte que se o mesmo não tivesse se protegido com os braços teria caído desacordado. Fábio correu de sua ponta voando numa pesada que quase acerta o rosto do volante, pois ele havia se esquivado na hora em que o pé do nosso ponteiro passou tirando tinta da sua bochecha. Parti para tentar acalmar os ânimos dos meus dois amigos e escutei um grito de Marcos cujo corria como um louco bufando lá no meio de campo com os punhos fechados. Rodeei o olhar e vi a multidão que corria em nossa direção, tanto de um time quanto de outro. Puxei Garrincha na hora em que o zagueiro deles, já recuperado da pancada de areia, voava seu braço num soco fervente, Fábio agarrou o volante pelo pescoço na hora em que Lúcio leva um soco do lateral, Marcos acerta uma pesada nas costas de um que estava com as mãos armadas para lutar, Tuta chega trombando em outro que aproximava por trás de mim tentando me acertar. Garrincha se solta de minhas mãos e parte para o zagueiro da pancada, tento segurá-lo novamente, mas aparece um magro ao meu lado na metade de um soco, protejo-me devolvendo o murro em seu rosto. Rodeio o olhar mais uma vez e vejo a confusão sem controle ao meu redor, percebo a impossibilidade de paz pelos próximos minutos e entro na confusão para defender meus amigos.
O negócio era pegar os de camisa vermelha que se destacavam na poeira formada pela briga. Tuta lutava com dois, Fábio se livrava de um e dava pesada noutro sempre correndo como forma de proteção, Marcos dava uma chave de braço no centroavante sendo esmurrado nas costas pelo lateral que era magrinho e baixo, Garrincha levava um soco do zagueiro estopim da briga, Buba dava e levava socos do meia direita deles. O goleiro deles veio em minha direção bufando pelo nariz, armou um murro, me esquivei e soquei sua costela, ele caiu gemendo e pensei: esse tá fora da confusão. Empurrei o camisa sete pelas costas, pois estava mirando a nuca de Adriano que duelava com alguém de vermelho, virei e vi Fábio voando com o pé armado para dar uma pesada em minha direção. Em mim não, doido! Gritei no pensamento pondo as duas mãos no rosto. Ele passou zunindo ao meu lado acertando o volante que já vinha por trás para me pegar. Ofereci minha mão para ele apoiar-se e levantar:
-Valeu, mermão. Nem tinha visto ele.
Vi mais um vindo em nossa direção e armei um soco em seu nariz, pegou de raspão acertando parte da bochecha, no instante em que cambaleou rodou o braço e eu senti uma dor no lado da orelha próximo ao queixo, balancei para o lado sentindo meu lado esquerdo latejar. Joguei meu braço em busca do seu rosto com o punho fechado e sofri um impulso nele fazendo-o retornar, foi sua defesa que não deixou eu acertar o soco. Vi sua mão fazer o mesmo movimento que o meu e estiquei o meu braço para sentir nova pancada com o choque entre o antebraço, ele voou sua outra mão para o outro lado do meu rosto, mas defendi da mesma forma e uma sequencia de murros foi executada pelo mesmo com várias defesas minhas em sequencia, com isso ele abriu muito os braços para pôr mais força em seus golpes. Não contei conversa, na sua primeira distração rodei meu braço de baixo para cima encontrando seu queixo exposto num murro certeiro que o fez cambalear e cair. Mirei-o no chão percebendo um início de sangramento vindo de sua boca. “Mais um fora”. E saí a procura de outro.
A poeira intensificou a pouca visibilidade da confusão. Uma mancha vermelha aproximou e eu me armei, mas vi que vinha de costas defendendo-se dos vários socos de Tuta, esse mostrava o rosto roxo devido aos murros que levara. Atrás dele um pé alcançou suas costas fazendo-o cambalear para frente, trombar no seu adversário e cair juntos no chão barrento. A fúria do mesmo por ter levado esse pontapé foi descontado no pescoço do que ficara embaixo dele, senti pena do cara, pois Tuta é forte o bastante para não deixa-lo mais com forças para a luta. Por outro lado, dei uma rasteira na canela do autor do pontapé no meu primo fazendo-o cair. Pensei em chutá-lo, mas não o fiz, não gosto de covardia. Esperei ele levantar-se acertando um soco em seu rosto, cambaleou e caiu, levantou-se e acertei outro, mais uma queda e mais um soco em sua próxima elevação. Na quarta tentativa de elevar-se senti um peso nas costas e caí descontrolado em cima do mesmo, me jogou para o lado e correu. Minhas costas doíam. Virei de frente percebendo que ele tinha dado uma pesada em mim e já vinha com um chute armado em direção as minhas costelas, me joguei para o lado fazendo-o chutar a poeira. Puxei seu pé esquerdo para escutar o baque do mesmo no chão.
Tentei me levantar, mas fui puxado para o chão por ele que acertou uma tapa em meu estômago e pulou em cima de mim logo em seguida, joguei-o de lado e descontei a tapa no seu estômago, mas com a mão fechada. Busquei o lado mais baixo da barriga, pois se acertasse sua boca do estômago mandá-lo-ia para o hospital sem fôlego. Ainda deitado subiu o pé tentando acertar minha coxa com o calcanhar, afastei as pernas fazendo-o espancar o solo duro e gemer com a mão no pé. Esse não se levanta mais. Mas, por precaução, soquei sua coxa num tostão em seu músculo. Me levantei e percebi que ele estava no meio da confusão, deitado e sem condições de ficar em pé. Não. Não sou tão mau assim. Puxei-o pela gola da camisa com uma certa brutalidade e joguei-o para fora da confusão percebendo um olhar estranho dele, vi que era o goleiro do Malvinas.
Voltei para o tumulto me jogando em cima de uma mancha vermelha. Fui jogado para trás caindo de costas. Levantaram-me pela gola com o punho em riste. Fábio que me soltou.
-Deixa pra dormir em casa, mermão. Bora pra luta.
-Dormindo, é?!
Só ele para fazer piadinhas numa hora dessas. Estava eufórico. Correu e deu mais um pulo noutro malvinense gritando com um sorriso no rosto. Joguei a perna noutro. Tuta esmurrou. Marcos agarrou dois. Garrincha levava socos. Adriano deitado com um numa briga de chão. Poeira. Pontapé. Murros. Socos. Manchas azuis. Manchas vermelhas. Sirene da polícia... Polícia?!
-Chamaram a polícia! – Gritou alguém do lado de fora da confusão.
Alguns começaram a se afastar com os punhos em riste. A poeira começou a baixar. Vi metade do meu time já no nosso campo de defesa. Menos Garrincha e o volante que trocavam insultos um de frente ao outro. Puxei nosso centroavante pelo braço e levei-o para nosso lado. As pessoas que assistiam no lado do campo agitavam-se de um lado para outro, alguns assistiam eufóricos com sorrisos, o organizador conferenciava com o juiz, Cirilo bufava vermelho próximo de onde estávamos. O carro da polícia passou devagarinho pela avenida lateral com os policiais observando o movimento, parou na tenda da organização e ficou na espreita.
Todos os jogadores estavam com algum hematoma em seu corpo, tanto do 13 de Maio como do Malvinas. Recomeçar o jogo seria difícil, mas uma decisão veio dos organizadores e nela a expulsão de Garrincha e do volante. Ninguém protestou e achou até razoável. Meia hora depois da confusão, quando todos estavam recuperados o jogo reiniciou com a bola em poder do Malvinas. Marcos queria reivindicar, pois o jogo havia parado com uma falta em nosso centroavante. Pus a mão em seu ombro e falei:
-Deixa, mermão. Vamos jogar. Somos melhores que eles.
Tudo bem quem, em minha ótica, isso poderia ser verdade, mas não seria na visão dos nossos adversários e eles ficaram tocando bola de um lado para outro achando que uma hora furariam nosso bloqueio. Quando a posse estava conosco tentávamos da mesma forma achar espaço na defesa deles, mas o ambiente não ficou tão agradável depois da confusão e o jogo ficou lento. Toques de um lado para outro sem uma jogada mais perigosa foram fazendo o tempo passar e quase no fim do jogo a redenção veio.
-Capricha Henrique. Essa é sua.
Disse Fábio entregando-me a bola quando o Mudinho recebeu a falta próxima à grande área e um pouco à esquerda. Posicionei a redonda no local indicado pelo árbitro e dei quatro passos para trás e um para o lado, mirei o terceiro homem da barreira humana e esperei o apito. Corri de encontro a bola olhando-a com desejo e bati na parte direita a meia altura com o lado interno do meu pé. Olhei a danada subir, sobrevoar as cabeças pulantes da barreira e viajar até a trave, uma mão enluvada apareceu por sobre os cabelos e olhares, pensei que ia dar tempo dela tocar na bola, mas não deu. O chuá que todos ouviram veio da redonda quando tocou na rede pela parte de dentro e foi morrer no canto da trave adocicando nossas vidas.
-Goooool! – Gritou Tuta.
Corri para o lado dos reservas e pulei em cima de Garrincha que desequilibrou caindo por cima da sacola de roupas do time. Senti os pesos por cima da gente e a vibração de alegria de todos. Quando voltamos para o campo, Cirilo já tinha feito duas alterações, pôs um zagueiro e um volante para fechar o time. Não atacamos mais e nem eles fizeram gols também. Quando o árbitro apitou encerrando a partida a euforia foi grande. A farra foi maior e não queríamos saber quem estava perto, assistindo ou criticando, queríamos era festejar. Claro. Estávamos na casa deles, teríamos que nos conter na vibração, mas isso não foi possível. Vencer o Malvinas no próprio bairro deles é uma coisa muito boa, principalmente uma final.
-É campeão, Henrique!



Literatura Forrozeira

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